A área da Medicina Veterinária que se preocupa com o bem-estar animal, preservação do meio ambiente e saúde das comunidades.

A Medicina Veterinária do Coletivo (MVC) é uma área multidisciplinar da Medicina Veterinária que integra a Saúde Coletiva, a Medicina de Abrigos e a Medicina Veterinária Legal. Desenvolveu-se pela necessidade de implementação de políticas públicas para o manejo populacional humanitário e sustentável de cães e gatos (MPCG) em áreas urbanas. Em outros países essa área é conhecida como shelter medicine (medicina de abrigos) ou medicina de albergues. Considerando a importância crescente dos animais como membros das famílias multiespécies, fatores sociais, econômicos e culturais que podem afetar estas interações.

Novos métodos de manejo dos animais mantidos em abrigos são exigidos. Deve-se considerar a coletividade e tudo o que ela envolve, como cuidados preventivos e curativos de saúde, interações sociais, limpeza, qualidade de recintos, capacitação da equipe e também a preocupação com a saúde física e mental dos indivíduos focando no bem-estar animal.

Um breve histórico

O convívio entre pessoas e animais ocorre há muitos anos e, se certos cuidados não forem tomados essa convivência pode não ser saudável ou isenta de riscos.

O controle da raiva é historicamente um dos principais exemplos de medidas extremas que foram tomadas em relação à vida dos animais. A raiva é uma doença zoonótica (que pode ser transmitida entre animais e pessoas) altamente letal. Inúmeras espécies (gatos, bovinos, equinos e animais silvestres, como morcegos e raposas) podem infectar-se e transmitir esse vírus aos humanos. Por muito tempo a principal espécie envolvida nessa transmissão foi o cão doméstico.

Desde que o vírus foi descoberto na saliva de cães no século XIX iniciou-se a captura e eliminação em massa destes animais como tentativa de conter a transmissão viral. De um lado criou-se espaços públicos que eram utilizados para a observação, alojamento e eliminação dos animais capturados e do outro movimentos do terceiro setor (ONGs) criaram espaços privados para a proteção dos animais. 

O desconhecimento, a ausência de políticas públicas e aspectos socioculturais faziam com que a eliminação dos animais fosse realizada com métodos não humanitários que causavam intenso sofrimento. Ainda hoje há países que se utilizam de métodos cruéis para conter a população de animais. Nos EUA ocorreu um movimento chamado no kill (não matar) que lutava pelo fim da morte de animais saudáveis e adotáveis. A necessidade de manter a qualidade de vida desses animais fez crescer a preocupação e a importância da medicina de abrigos.

No Brasil, a eliminação de cães errantes (que estão soltos nas ruas sem tutor identificado) era praticada como política de controle da raiva humana e aconteceu massivamente até meados da década de 1990. No município de São Paulo-SP a pressão de ativistas, médicos veterinários, somado ao apoio de instituições internacionais de proteção animal fez com que formas mais humanitárias de eutanásia fossem implantadas até que medidas pró vida começassem a ser praticadas. 

A captura dos cães era realizada por profissionais não capacitados através das “carrocinhas”. Além disso, o enfoque dessas ações era exclusivamente a saúde humana, os animais eram mantidos em situações precárias sem assistência veterinária, submetidos a alto nível de stress e sofrimento até o dia de sua morte (que geralmente ocorria no terceiro dia após a captura).

Em 1992, a Organização Mundial da Saúde (World Health Organization – WHO), por meio do seu 8º Relatório do Comitê de Especialistas em Combate a Raiva afirmou: “Não existe nenhuma prova de que a eliminação de cães tenha gerado impacto significativo na densidade das populações caninas ou na propagação da raiva. A renovação das populações caninas é muito rápida e a taxa de sobrevivência delas sobrepõe facilmente a taxa de eliminação”. Entre as recomendações previstas nesse relatório estavam: restrição de movimentos, controle do habitat e controle reprodutivo, registro e identificação animal, educação e envolvimento da comunidade. 

Fim das carrocinhas

Em 2006, o Estado do Rio de Janeiro proíbe a eliminação de animais como método de controle populacional, seguido pelo Estado de São Paulo em 2008. Outros Estados também aderiram ao movimento de “não matar”.

A eliminação dos cães além de cruel era ineficiente para controlar a raiva e o crescimento da população de animais, sendo vital estabelecer medidas éticas e humanitárias como programas de castração gratuitos ou a baixo custo que incluem também o registro animal, educação e participação popular para promover a guarda responsável.

Após ser determinado o fim da eliminação dos animais sadios como forma de controle da população e doenças, os centros de controle de zoonoses precisaram passar por revisão de procedimentos para implantar a medicina de abrigos e métodos para reintroduzir na sociedade animais que não apresentavam riscos por meio do incentivo à adoção.

Medicina veterinária do coletivo nasce para romper com antigos paradigmas

Estas transformações exigiram a implantação de novos métodos de manejo dos animais mantidos nos abrigos considerando a coletividade e tudo o que ela envolve.

Até o momento não há uma política nacional de promoção do manejo populacional de cães e gatos ficando a cargo dos Estados e Municípios propor e estabelecer programas sem incentivo federal.

A MVC nasce dessas demandas e requer para sua aplicação práticas intersetoriais e multiprofissionais que promovam melhorias na qualidade de vida das pessoas, animais e do planeta, aliada a uma evolução moral da sociedade que entende a necessidade de estabelecer com os animais relações mais harmoniosas e benéficas a todos. O conceito de Saúde Única vem transformar a maneira como entendemos nosso papel no planeta, sendo necessário assumir nosso compromisso e responsabilidade com os animais, com a saúde humana e com o desenvolvimento de um meio ambiente equilibrado.

Buscar estabelecer parcerias entre o poder público, entidades de proteção animal e universidades garante um serviço em rede capaz de visualizar as demandas de maneira holística. Além disso, todas as ações devem e precisam ser monitoradas para ajustes se necessário.

Pilares da medicina veterinária do coletivo e o conceito de Saúde Única

Saúde coletiva

A saúde coletiva integra conhecimentos das ciências da saúde e ciências sociais, analisa o impacto de fatores sociais no desenvolvimento de doenças para assim promover políticas de promoção da saúde das comunidades. 

As ações de saúde pública para a prevenção de zoonoses considerou por muito tempo apenas a saúde humana, promovendo a imagem dos animais como transmissores de doenças ou mordedores e perigosos. Como pode ser observado nas medidas tomadas para combater a raiva em que animais, tão vítimas do vírus quanto os seres humanos, eram capturados e mortos.

Esse tipo de imagem negativa dos animais perdurou por muito tempo e até hoje tem reflexos na relação das pessoas. Infelizmente ainda é comum tutores abandonarem animais domésticos por acreditarem que o animal possa transmitir alguma doença.

De fato, a relação entre animais humanos e não humanos não é isenta de riscos de transmissão de doenças ou acidentes (como mordeduras ou acidentes de carro), mas a Saúde Única é o conceito que traduz a união e a inter-relação entre a saúde animal, humana e ambiental. Portanto a promoção da saúde e a prevenção de doenças requer atuação em todos esses elos.

Zelar pelo bem-estar e saúde animal é também cuidar da saúde e bem-estar únicos. 

O abandono de animais e a presença de animais e pessoas em situação de vulnerabilidade nas comunidades são exemplos de fatores que têm impactos na saúde coletiva, sendo necessário identificar sua ocorrência para definir estratégias de ação que envolvam equipes multiprofissionais. 

A ausência de políticas públicas para promover os cuidados que os animais necessitam prejudica toda a coletividade e impede o estabelecimento de relações sadias e harmoniosas entre animais humanos e não humanos. Entre as medidas essenciais temos o controle reprodutivo como uma ferramenta de educação da população e promoção da guarda responsável, cuidados preventivos e curativos de saúde. A guarda responsável é a condição que o tutor (guardião) entende as necessidades dos animais sob sua tutela e se compromete a atendê-las garantindo que esse animal não represente riscos a terceiros. A falta dessas políticas resulta em riscos de transmissão de zoonoses, acidentes envolvendo os animais, sofrimento animal e prejuízos à Saúde Única.

Medicina de abrigos

A medicina de abrigos surgiu da necessidade de programas de manejo e garantia da qualidade de vida dos animais que estão em abrigos antes capturados e mortos.

Animais acolhidos devem ser recuperados de doenças físicas ou traumas emocionais, reabilitados e ressocializados para serem reinseridos através de adoção para novos lares.

Os abrigos devem possuir fluxo e protocolos de entrada e saída de animais e divisão de grupos por categorias (como espécie, idade, condição de saúde e afinidade), procedimentos médicos veterinários e de limpeza e desinfecção.

A medicina de abrigos também considera os processos internos e externos que impactam no manejo desses locais, como recursos financeiros, humanos e estrutura física.

Medicina veterinária legal (MVL)

A MVL é a área da Medicina Veterinária que utiliza os conhecimentos técnicos para auxiliar a justiça em processos judiciais e outros processos legais do exercício da prática profissional. No contexto da MVC, a MVL é utilizada para promover o reconhecimento de situações que envolvam o sofrimento animal na elaboração de pareceres ou laudos técnicos que indicam situações que impactam o bem-estar animal e podem configurar maus-tratos.

Também ressalta a importância de elaboração de boas práticas e registro documental de todas as operações executadas em abrigos e afins. 

Leituras sugeridas:

GARCIA, R.C.M.; LOPES, A.M.L.; CALDERÓN, N. BRANDESPIM, D.F.Como nasceu a Medicina Veterinária do Coletivo? em GARCIA, R.C.M.; CALDERÓN, N. BRANDESPIM, D.F. Medicina veterinária do coletivo: fundamentos e práticas. 1ª edição. Editora integrativa vet. 2019

GARCIA, R.C.M. Definição da área de Medicina Veterinária do Coletivo. Universidade Federal do Paraná. 2014.


texto: Haiuly Viana

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