Deputados de São Paulo aprovam projeto que proíbe a venda de animais por pet shops, pessoas físicas e estabelecimentos sem cadastro

Por Haiuly Viana – Médica Veterinária e Gerente Técnica do Fórum Animal


Na terça-feira, dia 8 de agosto, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou o projeto de lei nº 523/2023, que proíbe a venda de animais em pet shops ou similares. Além disso, o projeto também cria o Cadastro Estadual do Criador de Animal (CECA). Com isso, os criadores devem obrigatoriamente solicitar o cadastro a fim de realizar a comercialização de cães, gatos, ou pássaros domésticos.

Ponderações

Apesar de o projeto ser uma importante iniciativa quanto ao bem-estar dos animais, que sofrem com as péssimas condições de criação e comercialização, sinalizamos que esse Projeto de Lei deve ser analisado com cautela. 

Isso porque o texto aprovado não especifica qual setor do estado ficará incumbido de realizar o cadastro dos criadores e tampouco quais os critérios para este cadastro. Sendo assim, o cadastro não será capaz de estabelecer os necessários e rigorosos requisitos de bem-estar animal. Tais requisitos forçariam os criadores a manterem condições adequadas para a criação dos animais dentro do que é considerado possível, uma vez que o próprio ambiente de criação de animais já é, em si, duvidoso e problemático, por tratá-los como produtos. 

Sendo assim, para que haja uma mudança real, Projetos de Lei que tratam de tal assunto deveriam analisar a situação de forma aprofundada, atingindo, então, as raízes do problema, como as condições das fêmeas de animais chamadas “matrizes”, por exemplo. É necessário esmiuçar os requisitos para adquirir tal cadastro, expor os bastidores e não só as óbvias crueldades da exposição dos animais em vitrines. 

Impedir a venda de animais em pet shops e por pessoas físicas tem obviamente pontos positivos. Isso pode auxiliar na prevenção da aquisição de animais por impulso, evitando também o abandono posterior destes animais e também evitar a manutenção de animais em locais de exposição inadequados, com número excessivo de animais e altos níveis de estresse.

O Projeto de Lei não menciona  plataformas e sites de venda ou redes sociais, dispondo apenas da proibição de venda por pessoa física. Dessa maneira, na prática, não é prevista punição ou sanção para o ambiente digital que hospeda o anúncio, mas, sim, apenas para quem o cria. Assim, sem a previsão de que o anúncio seja retirado de circulação, o impacto da proibição não é tão eficiente quanto poderia ser.

O Fórum Animal, diante de tais ponderações, parabeniza a iniciativa, mas a observa como o início de uma mudança e não como um material definitivo. Espera, com isso, que os legisladores aprofundem a discussão sobre a criação e comercialização de animais para que, no futuro, o país não seja mais palco das crueldades de tal sistema.

Contexto geral

Segundo a Pesquisa Nacional da Saúde divulgada pelo IBGE em 2015 (IBGE, 2015), a população canina domiciliada é estimada em 52 milhões, sendo que em 44,3% dos domicílios brasileiros 2 há pelo menos um cão, com média de 1,8 cães por domicílio. Em 2018 a venda direta de animais, entre cães, gatos e outras espécies, do criador ao tutor representaram 10% do mercado nacional com mais de 31 mil estabelecimentos de pet shops no país (IPB, 2019). 

Entretanto, a comercialização destes animais pode ocorrer em estabelecimentos físicos, os quais são passíveis de fiscalização, mas virtualmente, como aplicativos de mensagens, sites e redes sociais, o que dificulta a avaliação das condições de manutenção dos animais pelos compradores e fiscalização pelos órgãos responsáveis. No caso de animais silvestres, o comércio, mesmo de origem legal, pode fomentar a caça e o tráfico que alimenta o mercado com animais que podem ser adquiridos a valores mais acessíveis. E para as aves exóticas, o comércio estimula a objetificação dos animais e a manutenção de muitos destes animais em condições de baixo grau de bem-estar – com manejo nutricional inadequado, conforto comprometido e quase nenhuma oportunidade de expressão de comportamentos naturais da espécie, em gaiolas muito pequenas.

A venda em petshops incentiva a aquisição de animais por impulso, por tutores muitas vezes despreparados e que desconhecem o básico do comportamento animal, prejudicando que se estabeleça uma interação saudável e harmoniosa.  Isso pode acarretar em prejuízos ao bem-estar dos animais e maior risco de abandono e outras formas de maus-tratos.

A busca por animais com “padrões da raça” ou espécies da moda podem agravar seleções genéticas artificiais e causar pressão pela reprodução dos animais de maneira artificial, em um comércio cruel que impacta negativamente a saúde e o bem-estar dos animais. Estes padrões acabam sendo desejados pela população e são reproduzidos pelos demais criadores, perpetuando animais com deformidades anatômicas e problemas de saúde de graus variados. No caso dos cães, alguns desses defeitos anatômicos se tornam alterações de conformação visíveis, como encurtamento do focinho e prolongamento do palato mole, comum em raças braquicefálicas, como os Pugs, Shih Tzus. 

Sobre raças de animais

Raças de animais são resultado de processos de seleção natural (em menor proporção) e são muito impactadas por processos artificiais, quando pessoas escolhem, por determinadas características, quais animais serão reproduzidos e sempre envolve algum interesse, em sua  maioria econômico. Por si só, esse processo envolve mais um desejo humano do que preocupação com os interesses dos animais. Na realidade, em muitos dos casos, a seleção artificial desmedida pode acarretar em problemas de saúde e comportamentais.

Esses processos de seleção existem para atender a inúmeros interesses humanos, como maior produtividade, no caso de animais explorados para consumo e também por interesses de mercado consumidor, no comércio de animais domésticos.

No caso de cães de raça sua origem também remete a status social. Algumas raças foram selecionadas por aptidões específicas e consideradas animais da nobreza. Esse imaginário ainda influencia  na escolha dos animais que as pessoas escolhem levar para suas casas. Características físicas, como porte, cor e tipo de pelame, conformação da face e focinhos, somado ao papel que alguns  produtos audiovisuais, como novelas e filmes têm, influenciam padrões de consumo e podem impactar no interesse por determinadas raças (de cães e gatos) e até espécies de animais (silvestres nativos ou exóticos). 

Estabelecimentos comerciais e o impacto ao bem-estar animal

No Brasil, o aumento das denúncias de maus-tratos contra animais em estabelecimentos comerciais expõe a importância dos serviços de fiscalização e o diagnóstico de maus-tratos.

A criação de animais para fins comerciais ocorre em resposta a uma demanda ainda alta de consumidores que buscam estes indivíduos por determinadas características físicas. Seja a busca pelo porte pretensamente conhecido ou uma determinada raça/espécie da moda, o fato é que a comercialização de animais existe para atender a uma demanda de compradores que muitas vezes desconhecem a condição de manutenção dos animais nos criadouros.

A exposição de animais em petshops acarreta ainda mais sofrimento, pois são mantidos confinados em espaços pequenos, mal ventilados e em número alto de indivíduos. Além da exposição excessiva e por longos períodos, a proximidade com os clientes interessados ou não pela aquisição, é fator de estresse adicional para estes indivíduos. Pode haver também comprometimento na oferta de alimentação adequada e limpeza do recinto. Há também riscos sanitários, uma vez que a maioria dos animais (no caso de cães e gatos ) são filhotes, que estão em processo de vacinação e vermifugação. O estresse é um fator que impacta a imunidade dos animais. Pode haver também mistura de animais de diferentes origens, o que acarreta riscos de transmissão de doenças e comprometimento geral do bem-estar.

No caso de aves, como passeriformes, a comercialização destes animais pode fomentar o tráfico, que vitimiza milhares de animais todos os anos. No caso das aves exóticas, a venda indiscriminada estimula aquisição irresponsável. Além disso, a maioria das aves são mantidas em condições deploráveis nos estabelecimentos chamados de petshops. Há severos problemas de bem-estar para estes animais, como a manutenção em gaiolas pequenas e com higiene inadequada, oferta de alimentos inadequados (na quantidade ou na qualidade), ausência de água fresca e impossibilidade de exercer comportamentos naturais da espécie – como realizar pequenos voos. Além disso, também ocorre a mistura de animais de diferentes origens, o que pode aumentar o risco de transmissão de doenças e conflito entre os animais. 

A fiscalização dos locais de criação dos animais é uma estratégia importante de combate a todas as formas de maus-tratos, mas é essencial coibir a venda e promover a conscientização da população para aquisição responsável, preferencialmente através da adoção de cães e gatos. No caso das aves, é fundamental também educar a população para entender que o lugar de animal silvestre é na natureza, e não em cativeiro doméstico, atendendo aos desejos humanos de interação. Por fim, nós do Fórum Animal acreditamos que somente a proibição em caráter definitivo garantirá a dignidade que estes animais merecem, pois nenhum indivíduo deveria ser comercializado e tratado como  mercadoria.

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