Autora: Haiuly Viana, gerente técnica do Fórum Animal
O termo “especismo” foi popularizado pelo filósofo Peter Singer na década de 1970, em seu livro “Libertação Animal”. O especismo é a ideia de que uma espécie é superior a outras, justificando, assim, a discriminação ou o tratamento inferior a indivíduos de outras espécies, semelhante ao racismo ou sexismo, que são formas de discriminação baseadas na raça ou no sexo, respectivamente. No caso do especismo, a discriminação ocorre por uma crença, de parte da sociedade, de que os seres humanos são superiores a outras espécies, como os animais, e, por isso, têm direito de explorar, maltratar ou matar esses seres.
Podemos considerar que o especismo é o ponto central de decisões que privilegiam interesses humanos em detrimento de interesses dos animais. Na balança dos interesses, o direito à exploração comercial de animais ou mesmo a exploração destes para práticas relacionadas a manifestações culturais vem recebendo valor maior do que o direito essencial destes seres, como o direito à vida ou o direito de não ser explorado em determinadas práticas ou situações.
Um exemplo prático disso é um fato recente. Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram no dia 14 de março confirmar a validade da emenda constitucional que permite a prática da vaquejada em todo país, em votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5728/DF ajuizada pelo Fórum Animal que tinha como objetivo reconhecer a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional (EC) 96/2017.
A EC nº 96/2017, que ficou conhecida durante a sua tramitação no Congresso Nacional como a “PEC da Vaquejada”, foi aprovada e alterou o artigo 225 da CF, acrescentando o parágrafo sétimo que tem o seguinte teor: “Para fins do disposto na parte final do inciso VII do parágrafo 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais.
Cabe reforçar que o artigo 225, inciso VII do parágrafo 1º veda a crueldade contra os animais. Portanto, a emenda parece ir na contramão do reconhecimento da dignidade dos animais, contido neste inciso. Esta emenda, inclusive, é entendida por alguns juristas como contrária ao teor protetivo da Constituição Federal que veda a crueldade contra os animais.
Infelizmente a Corte entendeu que deve ser mantida a EC que passa a reconhecer práticas, como a vaquejada, como patrimônio cultural. Alguns ministros inclusive consideram que a prática possui regulamento e portanto não seria considerada maus-tratos. O relator, ministro Dias Toffoli, entendeu que a vaquejada é uma prática esportiva e festiva devidamente regulamentada e deve ser preservada.
Entretanto, o próprio STF reconheceu a prática como inconstitucional em 2016. Na época, em outra composição de plenário, a maioria dos ministros considerou que a atividade causa sofrimento aos animais. A decisão na época derrubou uma lei do Ceará que visava regulamentar a prática no estado, gerando um conjunto de reações legislativas à referida decisão do STF, chamada de efeito backlash, que culminou com a edição da Lei federal n. 13.364/2016, reconhecendo a vaquejada como patrimônio cultural imaterial brasileiro e, meses depois, a própria Emenda Constitucional em discussão.
O voto do relator foi acompanhado por Flávio Dino, Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Nunes Marques, André Mendonça, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes acompanharam o relator com ressalvas.
Citando o caso do Ministro Flávio Dino, o mesmo parece necessitar de ferramentas que o auxilie a reconhecer os interesses dos animais e a tomar decisões antiespecistas nos processos que analisa. Em 2024, o Ministro proferiu decisão contrária a uma lei estadual de São Paulo que estabelecia critérios para a comercialização de cães e gatos. Em sua liminar, Dino suspendeu trechos da norma que obrigavam criadores a castrar os filhotes e afirmou que a prática causava alteração compulsória, indiscriminada e artificial da morfologia dos cães e gatos e que violava a dignidade desses animais, com comprometimento de sua integridade física e da própria existência das raças.
Tais argumentos são facilmente refutados, uma vez que os procedimentos são feitos há muitos anos, de maneira segura e utilizando, em sua maioria, de técnicas reconhecidas e minimamente invasivas. E sobre a alegação de comprometer a existência das raças, esse risco inexiste, uma vez que nenhum programa de esterilização de animais, nem os mais bem sucedidos do mundo, consegue atingir uma cobertura de 100% de animais castrados. Além disso, outros fatores contribuem para a renovação da população de animais domésticos.
Não há dados oficiais, mas estimativas sugerem que haja mais de um bilhão de animais de estimação em todo o mundo. Somente famílias dos EUA, Brasil, União Europeia e China são responsáveis por mais de meio bilhão de cães e gatos, e estima-se que mais da metade do mundo tenha um animal de estimação em casa.
A controvérsia sobre a castração pediátrica em animais de raça se pauta muito mais nas tentativas de garantir a manutenção do direito à exploração comercial de características reprodutivas dos animais, do que nos riscos do procedimento cirúrgico em si para os indivíduos. E neste caso, o ministro acaba interpretando a demanda do ponto de vista do grupo detentor do interesse em explorar comercialmente as raças de animais sem considerar fatores sociais, econômicos e culturais que impactam na relação entre os animais e as comunidades humanas.
As raças de animais são resultado de processos de seleção natural (em menor proporção) e são muito impactadas por processos artificiais, quando indivíduos humanos escolhem, por determinadas características, quais animais serão reproduzidos. Na maioria das vezes, os critérios envolvem algum interesse, na maioria das vezes, econômico. Por si só, esse processo envolve mais um desejo humano do que preocupação com os interesses dos animais. Na realidade, em muitos dos casos, a seleção artificial desmedida pode acarretar em problemas de saúde e alterações comportamentais.
Como consequência prática, a decisão do Ministro pode gerar jurisprudência negativa, implicando em impactos negativos para programas de manejo populacional que visam gerar bem para o maior número de indivíduos, em sua maioria animais com pouco ou nenhum acesso a cuidados veterinários e de famílias em situação de vulnerabilidade social.
A decisão claramente desconsidera a medicina veterinária do coletivo e a importância da castração como uma estratégia de prevenção ao abandono de animais, inclusive os de raça definida que podem ser adquiridos por impulso em movimentos de cães “da moda”.
Estes dois atos do ministro demonstram o distanciamento que membros do judiciário, e não somente desta esfera de poder, têm das demandas reais da sociedade, em especial, dos interesses dos animais não humanos em ter seu bem-estar considerado. Os animais seguem sendo subjugados para atender a interesses comerciais de quem os explora, sem que a justiça, salvo exceções, seja capaz de reconhecer seu direito intrínseco de viver uma vida digna e de não sofrer. O judiciário muitas vezes se pauta pela voz predominante, que é de quem explora outros seres sencientes para fins econômicos, como no caso do comércio de cães/gatos de raça e/ou pretextos culturais, a exemplo da vaquejada.