Haiuly Viana, Gerente Técnica do Fórum Animal
Warner Bento, Coordenador de Políticas Públicas do Fórum Animal
A aprovação, pelo Senado, do PL nº2.159/2021 que afrouxa o licenciamento ambiental no país teve ampla repercussão na imprensa e nas redes sociais. O projeto também ficou conhecido como “PL da Devastação”. Mas pelo menos um aspecto não teve o espaço que merece: os impactos da proposta sobre os direitos animais.
Os veículos de comunicação foram unânimes em registrar a “implosão do arcabouço ambiental”, como escreveu a colunista Miriam Leitão. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, alertou para os impactos nas negociações com a União Europeia. Foram comuns, também, os argumentos pela inconstitucionalidade do texto aprovado, que pode provocar, segundo se publicou, “uma avalanche de judicializações”.
O resultado foi visto como uma derrota da ministra e uma vitória da bancada ruralista. E aqui uma obviedade precisa ser dita: não se trata nem de vitória do agro nem de derrota apenas da ministra. O retrocesso nos atinge a todos, incluindo os animais. E alcança, inclusive, os produtores rurais. O agronegócio é um dos setores da economia mais dependentes daquilo que, diz-se, o projeto desrespeita em nossa Constituição: um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Não há produção rural sem clima adequado, sem água e sem equilíbrio ecológico – tudo que está em jogo quando se fala de licenciamento ambiental.
Entre perdas e danos no Senado, esqueceu-se de incluir as preocupações com a fauna. Os animais seguem vítimas invisíveis dos retrocessos ambientais. Trata-se de uma enormidade de indivíduos sencientes, reféns de parlamentares que ignoram a necessidade de se garantir condições dignas para animais humanos e não humanos. O impacto de medidas como esta são incalculáveis e irreversíveis, uma vez que muitos destes seres podem se extinguir antes mesmo de serem conhecidos por pesquisadores que estudam a fauna.
O novo marco flexibiliza o processo de licenciamento mesmo para empreendimentos com significativo impacto ambiental, como obras de infraestrutura, mineração e exploração de petróleo — atividades que frequentemente resultam na fragmentação de habitats, degradação de ecossistemas e, consequentemente, em sofrimento, morte e extinção de espécies silvestres.
Além disso, a diminuição da participação da Funai, do ICMBio e do Ibama nos processos decisórios, junto ao uso de mecanismos de autodeclaração, fragiliza ainda mais a avaliação de projetos que possam afetar habitats, corredores ecológicos e áreas de reprodução e migração de fauna.
O caso da Foz do Amazonas é emblemático: uma região de altíssima biodiversidade, onde a exploração de petróleo pode gerar derramamentos e degradações com impactos diretos sobre espécies marinhas, aves migratórias e comunidades costeiras dependentes da fauna local.
Portanto, embora não nominalmente tratados, os direitos animais — enquanto extensão dos direitos socioambientais — estão sim ameaçados pela nova legislação, que prioriza interesses econômicos em detrimento da vida animal e da proteção dos habitats.
Com a flexibilização ou dispensa do licenciamento ambiental para determinadas atividades (como agricultura, pecuária extensiva, manutenção de estradas, obras de infraestrutura), há risco de desmatamento ou degradação de áreas naturais sem estudos prévios de impacto. A fragmentação de habitats dificulta o deslocamento e a reprodução de animais silvestres e provoca a expulsão de espécies de áreas de ocorrência natural. Esses riscos podem afetar diretamente mamíferos de médio a grande porte, aves nativas e anfíbios que são muito sensíveis à mudança ambiental.
Se o licenciamento for dispensado em regiões que coincidem com áreas de presença de espécies ameaçadas, projetos podem avançar sem considerar planos de mitigação ou compensação ambiental, como a obrigatoriedade de corredores ecológicos, resgate e relocação de fauna e monitoramento pós-obra. Com menos exigências ambientais, atividades poluentes (com o uso de agroquímicos e aqueles que geram resíduos industriais ou sedimentos de dragagem, por exemplo) podem atingir rios e lagos, prejudicando animais aquáticos, como peixes, anfíbios e répteis. A contaminação do solo e da vegetação pode comprometer as fontes de alimentação de diversas espécies, tanto pela escassez como pela ingestão acidental de resíduos tóxicos que podem levar à morte.
Um dos elementos mais criticados do PL é a diminuição das exigências para Estudos de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). Esses estudos são fundamentais para mapear os grupos de animais existentes em uma região antes da autorização para uma obra ou novo empreendimento. Sem estudos prévios para identificar estes animais, tanto o conhecimento sobre estes indivíduos quanto as ações para sua proteção ficarão prejudicadas.
A depender de como for regulamentada e aplicada, a nova lei pode também ampliar os riscos de interações negativas entre as comunidades humanas e os animais. A redução de vegetação e o desmatamento podem gerar uma aproximação perigosa dos animais, causando atropelamentos, predação de rebanhos e até aumento da ocorrência de espécimes silvestres em áreas urbanas.
A transferência da fiscalização, da autorização das licenças e das discussões técnicas para órgãos estaduais e municipais torna toda a estrutura de proteção ambiental frágil e vulnerável a pressões políticas e econômicas locais e até mesmo um nivelamento por baixo das normas, uma vez que poderá haver competição entre estados ou municípios para atrair novos empreendimentos.
Neste contexto, é preciso olhar, também, para omissões relevantes para os direitos animais na referida proposta. Entre elas, está a ausência de dispositivos específicos sobre fauna silvestre e doméstica: o projeto fala amplamente de “impacto ambiental”, mas não exige estudos de impacto à fauna nem menciona medidas de mitigação direcionadas à proteção animal.
O PL 2.159/2021, como aprovado, enfraquece a proteção da fauna ao permitir a dispensa ou simplificação do licenciamento para atividades com potencial de afetar animais. O texto também reduz o protagonismo de órgãos ambientais e técnicos. E omite a exigência de análise específica sobre impactos à fauna nos processos de licenciamento.
O projeto, como aprovado no Senado, representa, sem dúvida, um retrocesso em relação ao controle ambiental e à proteção dos direitos dos animais, particularmente no que diz respeito à fauna silvestre ameaçada por obras de infraestrutura, desmatamento e expansão agropecuária.
O afrouxamento das regras impacta todo o meio-ambiente, incluindo a vida animal, principalmente no que se refere à fauna silvestre, que perde proteção.
Para entrar em vigor, o projeto ainda precisa passar pelo crivo dos deputados (embora não se deva esperar por melhoras no texto) e, depois, pela sanção presidencial. Finalmente, restará ao Judiciário – neste caso, ao Supremo Tribunal Federal (STF), julgar as alegadas inconstitucionalidades da proposta, o que já é usado pelos parlamentares como parte da disputa entre os poderes.
As instituições democráticas existem para cumprirem seu papel constitucional. Uma das responsabilidades do STF é garantir que as propostas criadas pelo Congresso não afrontem a nossa lei maior. É dever da corte. O problema está em, mais uma vez, contarmos unicamente com o Judiciário para o exercício da cidadania. Esta deveria ser uma prática corriqueira e cotidiana de todos nós. Por nós e por aqueles que não conseguem se manifestar.