Vilanizar os pesquisadores não resolve os problemas éticos da pesquisa com animais. O grande vilão é o Conflito de Interesses. Como vamos combatê-lo?

Na série fatos e valores temos trazido argumentos, situações, reflexões e exemplos que apontam para o entendimento de que o uso de animais em pesquisas envolve questões éticas bastante complexas. Uma delas é certamente o conflito de interesses inerente: por um lado, aqueles que realizam atividades envolvendo uso de animais têm interesses pessoais e profissionais em manter ou avançar em suas carreiras; por outro lado, existe a demanda ética de considerar e respeitar a melhor qualidade de vida aos animais usados nessas pesquisas. É raro ou inexistente ver um pesquisador dizer não se importar com o bem-estar dos animais ou não concordar com a importância de melhorar a qualidade de vida deles.

Ora, se isso é verdade, garantir que os animais tenham vidas dignas deveria ser uma tarefa simples. Porém, ocorre que os usuários de animais têm interesses pessoais e profissionais que podem incentivá-los a permanecer em um paradigma no qual os animais não são realmente considerados como sujeitos morais. Com isso, as decisões sobre o uso e o tratamento de animais na pesquisa são influenciadas por esses interesses, em vez de serem realmente guiadas por princípios éticos globalmente aceitos, como a premissa de evitar causar sofrimento desnecessário ou submeter seres sencientes a vidas miseráveis.

No contexto da pesquisa ocorrem padrões que cada vez mais intrigam e preocupam estudiosos da psicologia do julgamento, cognição moral, epistemologia, filosofia da ciência e da Bioética. Três conceitos importantes dessas áreas são dissonância cognitiva, viés cognitivo e desengajamento moral. A dissonância cognitiva ocorre quando os pesquisadores enfrentam a tensão entre suas crenças pessoais sobre o tratamento ético dos animais e as exigências de suas pesquisas, que podem necessitar do uso de animais de maneiras que causem sofrimento. O viés cognitivo influencia a maneira como esses pesquisadores veem e interpretam a ética do uso de animais na pesquisa, potencialmente diminuindo sua percepção do sofrimento animal ou superestimando a necessidade e a importância do uso de animais. E o desengajamento moral, ocorre quando os pesquisadores suspendem ou ignoram suas crenças morais para permitir ações que normalmente considerariam antiéticas, como o tratamento prejudicial aos animais na pesquisa.

Essa combinação de fatores cria  uma situação em que a qualidade de vida dos animais depende da decisão e ação de cidadãos que podem estar pessoalmente impedidos de tomar decisões verdadeiramente justas. E estas pessoas têm o poder de decidir como será a vida de milhões de animais a cada ano.

Assim, qualquer instância deliberativa sobre o uso de animais em pesquisa é capaz de considerar seriamente os interesses conflitantes com os interesses pessoais e profissionais dos pesquisadores. No entanto, tudo indica que a estrutura atual dos conselhos e comissões deliberativas não cumprem esse requisito essencial e as decisões tendem a favorecer os interesses que pesam mais para os seus membros. Isso, de nenhuma forma, implica nenhum tipo de ataque ou vilanização dos pesquisadores ou da ciência. Pelo contrário, o Fórum Animal têm profundo respeito e admiração por qualquer profissional que trabalhe genuinamente em prol do avanço da ciência no Brasil, e que assim como nós, enxerga a ciência como um instrumento que pode e deve ser usado para melhorar a sociedade. 

Por isso, enfatizamos, na série fatos e valores, que o problema do uso de animais em pesquisa merece ser tratado com o devido cuidado. Entendemos que provavelmente a maioria dos pesquisadores acreditam estarem agindo da melhor forma possível, porém as falhas cognitivas, estruturais e fundamentais, dificilmente contornáveis, impedem proteção efetiva aos animais no contexto da pesquisa. Para atenuar esse problema, é CRUCIAL que os usuários de animais reconheçam que, a menos que haja esforços ativos para mudar essa situação, eles possuem um viés ideológico que prejudica a análise ética sobre o uso de animais nas diferentes situações de seu cotidiano. 

A reflexão sobre essas questões é essencial para a construção de um futuro em que a ciência e o bem-estar animal caminhem juntos. Acreditamos na possibilidade de encontrar soluções inovadoras e éticas para os desafios da pesquisa, preservando a dignidade e o respeito aos animais. 

Idealmente, a tomada de decisões em pesquisa e ensino que envolve o uso de animais buscaria um equilíbrio entre os interesses científicos, educacionais e os direitos e bem-estar dos animais. No entanto, alcançar esse equilíbrio na realidade é um grande desafio. 

A situação se complica pela presença de fatores ideológicos arraigados, como a crença de que o uso de animais é moralmente justificável se tiver o intuito de contribuir para o avanço do conhecimento humano. Mesmo quando há baixa probabilidade de realmente ocorrer tal contribuição. Este viés de julgamento pode levar a decisões que favorecem a reprodução de metodologias mais tradicionais em detrimento de escolhas metodológicas mais alinhadas às preocupações de bem-estar animal. Para começar a resolver este problema, é fundamental reconhecer a existência deste viés e questionar sua validade. É crucial que pesquisadores, educadores e a sociedade como um todo estejam dispostos a refletir profundamente sobre a moralidade por trás do uso de animais para fins científicos e educacionais.

Esta discussão envolve fatores complexos e tem escala global, sendo importante a participação de várias disciplinas e perspectivas, desde a filosofia e a ética até a ciência e a medicina. Enquanto sociedade, temos a responsabilidade de continuar refletindo sobre essas questões e buscar alternativas sempre que possível. O desenvolvimento e a adoção de métodos alternativos, como o uso de cultura de células, modelos computacionais, sistemas micro fisiológicos, tecidos artificiais, entre outros, são passos fundamentais nessa direção​​. As alternativas são fundamentais para a demanda ética de reduzir o uso de animais em pesquisa e ensino, e também podem levar a resultados mais relevantes e precisos, uma vez que os modelos animais também têm uma série de problemas metodológicos como a dificuldade translacional e desvantagens como a demora para obter resultados, alto custo de manutenção, impacto ambiental e sanitário e riscos de biossegurança.

Se buscamos uma sociedade em que as decisões tomadas nesta área sejam as mais éticas e justas possíveis, é preciso haver uma avaliação cuidadosa das necessidades da pesquisa e do ensino, juntamente com uma consideração séria embasada em termos de bem-estar animal e direitos dos animais, bem como transparência, responsabilidade e uma constante reavaliação de nossas práticas e crenças.

A reflexão sobre essas questões é essencial para a construção de um futuro em que a ciência e o bem-estar animal caminhem juntos. Acreditamos na possibilidade de encontrar soluções inovadoras e éticas para os desafios da pesquisa, preservando a dignidade e o respeito aos animais. Mas isso só acontecerá quando cada um fizer sua parte para reduzir o problema.

Compartilhe

veja mais